É CORRETO NÃO PRECISAR DE NINGUÉM?
"Pode deixar que eu resolvo!", "Não preciso de ninguém", " eu me basto", já ouvimos essas frases muitas vezes, não é? e nós mesmos possivelmente já falamos algo assim em algum momento da nossa vida, em momentos de necessidade de auto-afirmação.
Essas frases expressam claramente um desejo e intenção de expressar independência e auto-suficiência.
Porque a cultura social atual
faz uma verdadeira apologia à autossuficiência, pregando a idéia de que o melhor, o bonito e o positivo é a pessoa forte, ser autossuficiente e independente, e não precisar de ninguém para ser feliz.
E isso parece envolver um tipo de individualismo muito presente e valorizado no mundo atual e muito cobrado também pela sociedade.
Esse FALSO PODER de que se pode resolver tudo sozinho e de que não precisa de ninguém, na verdade disfarça o vazio e a solidão.
Isso vêm resultando em conflitos imensos, porque a existência humana depende do processo relacional para existir, simplesmente porque somos todos interdependentes.
E por isso mesmo, os consultórios dos especialistas na área da psicologia e da mente humana, estão cada vez mais lotados atualmente devido aos processos de ansiedade, depressão e principalmente SOLIDÃO.
Somos construídos e reconstruídos permanentemente à partir de nosso existir com o mundo e com o outro, portanto, uma pessoa para ser saudável ela depende da sua capacidade de conviver com os demais.
Porque segundo a psicanálise, a saúde mental e emocional depende de o indivíduo manter relacionamentos bons e saudáveis, também é recomendável que faça parte de um grupo no qual tenha referências e afinidades de interesses e objetivos.
Ocorre que também pela visão Espírita, o motivo principal do existir humano é aprender a se relacionar de maneira saudável e feliz. De forma que viemos ao mundo para o aprendizado do amor, que só pode acontecer através dos relacionamentos.
Daí, devido à tudo isto, muitas vezes ficamos divididos entre idéias que parecem dúbias, se é melhor lutar pela autossuficiência ou se devemos tentar relaxar entendendo que sempre iremos depender de alguém na vida.
Ficamos divididos porque nossos próprios sentimentos e emoções aspiram por amparo e acolhimento, porque todos no fundo necessitam disto, por mais fortes que sejam.
Porém, cada dia mais, mais pessoas querem demonstrar isso cada vez menos, porque têm medo de ficar nas mãos dos outros, de se tornarem frágeis, têm medo de sofrer, medo de se decepcionar.
O Mundo atual nos exige cada vez mais, mais demonstrações de força e independência, essa é que é a verdade.
Mas percebemos que tanto a ciência quanto o Espiritismo asseguram que sem bons relacionamentos ninguém pode ser feliz e saudável, por mais que algumas pessoas defendam a tese de que é possível ser feliz sozinho. Não é de fato.
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Mas sempre que nos encontramos em situação conflitante precisamos nos fazer alguns questionamentos:
1-Ser INTERDEPENDENTE significa não ter capacidade de se auto-amar?
2-Como ter independência emocional se ninguém pode ser feliz sozinho?
3-A idéia fixa de ser totalmente independente, evitando se relacionar com os demais pode caracterizar um distúrbio psíquico?
Vamos iniciar respondendo a última questão, que pode sim tratar-se de um distúrbio, e para nos ajudar a entender o porquê, vamos tomar por base a tese de um estudioso do comportamento humano, chamado, Perls (1988) que diz que existe um tipo de de distúrbio neurótico chamado RETROFLEXÃO que se trata de um distúrbios de fronteira, e que surge da incapacidade da pessoa de se relacionar bem com os demais. A pessoa se isola e dispensa o contato com o outro, voltando para si mesmo uma energia que seria naturalmente dirigida para a relação.
Então nós vemos aqui na idéia deste estudioso que a resistência ou dificuldade em se relacionar com as demais pessoas pode caracterizar uma neurose.
O termo RETROFLEXÃO Vem do latim e significa o que se curva, que se dobra para trás: retro-flexão".
A pessoa interrompe o relacionamento com as demais pessoas por certos medos da convivência, como o medo de agressão e de conflitos, por exemplo. Geralmente a retroflexão é resultado de conflito gerado na infância
Daí a pessoa passa a fazer consigo própria aquilo que gostaria de fazer com os outros, e essa dinâmica oferece à pessoa uma falsa impressão dessa autossuficiência.
E além do problema na neurose instalada, percebemos que de uma maneira preocupante que o individualismo está sendo muito presente e valorizado no mundo atual que faz apologia à auto-suficiência.
Essa situação toda está para lá de preocupante porque a sociedade tem vivido cada vez mais esta situação, principalmente pelas redes sociais, pela internet, e isso têm levado às pessoas à solidão.
Nunca se viu tantas narrativas de solidão como temos visto agora.
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As pessoas tem evitado de se relacionar por medo do confronto com o outro, por medo de conflitos e têm preferido os relacionamentos virtuais, muitas vezes ilusórios, e que persistem nunca se tornando pessoais.
E isso é muito negativo porque somente através do confronto é que poderemos nos transformar para melhor não é? Somos espelhos uns dos outros e somente através do outro percebemos quem realmente somos, o que é indispensável para que realizemos mudanças necessárias para nos tornarmos pessoas melhores.
Tanto que percebemos que pessoas muito solitárias, que vivem muitos anos ou uma vida inteira sozinhas, acabam desenvolvendo hábitos e manias muitas vezes negativos, que dificilmente conseguirão eliminar, justamente porque não têm o confronto necessário com outras pessoas que possam adverti-las, combatê-las sobre seus erros e manias ruins.
E o pior é que a sociedade reforça essa crença de que ao educar a pessoa para ser independente e auto-suficiente a está beneficiando.
Mas isso é uma mentira, porque o fechar-se em si mesmo pela falta de contato com o outro, o individualismo causa a solidão e reforça a neurose, e isso vai virando uma bola de neve.
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E o que afinal de contas pode levar uma pessoa a retroflexão, ou à fechar-se em si mesma não querendo se relacionar já que a natureza humana é de interdependência? o que a leva à isso além da influência social?
O que acontece é que a emoção autêntica da pessoa foi de alguma forma proibida e isso geralmente ocorre na infância, como a maioria dos conflitos.
Possivelmente, essa pessoa vivenciou situações de repressão de seus sentimentos e impulsos e pode ter se sentido inadequada e culpada quando manifestou raiva ou agressividade, quando muitas vezes os pais dizem, de uma maneira errada ou exagerada, por exemplo: "Não grite!, não responda seu pai, não faça bagunça, não agrida seu irmão, Se não me obedecer, você será castigado", e assim por diante.
Na fase adulta, a pessoa não pode enfrentar a situação porque tem medo de ferir e ser ferido, de ser criticada, só que isso está obviamente, no inconsciente.
É claro que a criança deve ser educada e muitas vezes repreendida, mas isso deve ser feito da forma certa e adequada, sem humilhar a criança, sem poda-la em sua criatividade e personalidade.
Porque a raiva tem seu lado positivo também, ela precisa ser expressada de alguma forma, para poder ser transmutada, para que leve a pessoa a tomar atitudes necessárias e a efetuar mudanças positivas e necessárias. A raiva tem um lado útil e necessário quando é bem canalizada.
Mas através da retroflexão, a pessoa deixa de exercer sua criatividade, sua agressividade natural e necessária para a vida, porque rejeitou esses sentimentos e jogou para o inconsciente, gerando neurose e conflitos, onde a pessoa passa a se sentir inadequada em tudo o que faz, preferindo se afastar do contato com as demais pessoas. Isso é muito sério e grave.
A pessoa acometida da neurose da retroflexão acredita que pode fazer melhor sozinha aquilo que poderia fazer com a ajuda do outro.
O outro é visto com desconfiança, uma vez que no passado ele não pôde contar com ninguém.
Quando criança, aprendeu a fazer tudo sozinha e acreditou que não pode contar com ninguém, que deve se bastar.
E a criança leva isso vida afora para a idade adulta, onde ela passa a perceber o contato como perigoso e que portanto deve ser evitado.
A pessoa acaba fazendo tudo consigo mesma, tornando-se um ser isolado e muitas vezes narcisista, daí, TRATA-SE aí DO CONFLITO INSTALADO.
E é o que mais mais temos ouvido hoje em dia são expressões assim: Meu Deus, o que está acontecendo com as pessoas? percebemos que grande parte das pessoas estão fechadas, parecem mesmo desconfiadas umas das outras, as relações estão afetadas.
Além disto, dos diversos conflitos estarem escondidos no inconsciente regendo à nossa vida, na sociedade, aquele que é diferente, representa ameaça, sendo colocado na categoria do anormal porque a sociedade valoriza o TER acima do SER, e é hostil às diferenças, não há acolhimento, não há espaço para as diferenças, das fraquezas, de impossibilidades, isso leva mais e mais ao preconceito, o que contribui para a geração nas pessoas de um movimento de isolamento que se reflete no corpo por sofrimento e adoecimento.
É a intolerância e desconfiança que estamos presenciando no dia-a-dia.
Agora imagine pessoas que já tem um conflito instalado da infância enfrentando essas influências sociais?
E isso tem acontecido com muitas pessoas que engolidas pelas exigências sociais, acabam sufocando a sua criatividade, ou seja, quem realmente são, e isso favorece tudo o que é ruim, inclusive o preconceito que é motivado e exteriorizado a partir do auto-preconceito, que nada mais é do que a não aceitação de quem se é.
Muitas pessoas vivem desta forma sem se questionar, sem buscar, pelo menos por um tempo, ajuda psicológica e emocional.
E o que a pessoa faz simplesmente, é pacificar o conflito, porque ela erradamente pensa que assim não irá sofrer, e isso significa que ela desiste, pelo menos por um tempo, de enfrentar a situação porque não acredita na solução.
E dai o vazio toma conta, porque apesar dessa desistência, a necessidade não foi satisfeita, então, a pessoa se sente humilhada por falta de auto-afirmação, de auto-valor e por isso sente o vazio.
E muitas vezes para disfarçar o vazio, a pessoa luta por ser auto-suficiente aos extremos, para afirmar o próprio valor e torna-se extremamente competitiva, tendo que ganhar todas as discussões, todas as situações, dai, como foi humilhado no passado, torna-se o arrogante do presente.
Vocês percebem ai a verdade de muitos perfis de pessoas arrogantes e até narcisistas.
SOLUÇÃO
Como no mais das vezes somos convidados à mudança pela dor, é através desse vazio que é possível para quem carrega esse conflito, entende-lo, saber que o conflito está ligado à figura dos pais, e apesar de a pessoa ficar dividida entre seu desejo de se auto-afirmar e os seus medos, ela acabando por optar por si, por libertar-se do conflito e da dor.
A partir disto é imprescindível a busca de ajuda de um profissional da saúde mental, que poderá levar o paciente à busca da origem do conflito, que normalmente está nas figuras paternas.
Assim como em todas as neuroses, a retroflexão se mantém porque a pessoa está fixada em um modo habitual de funcionamento, não atualizou uma situação que viveu no passado. Se ela não teve o colo de seus pais, o afago de que necessitou em determinado momento, não significa que não os obterá do mundo, pode obter sim.
Então é preciso abrir mão de viver um mundo irreal pela internet, e optar pela experiência da convivência real que sempre traz riscos e isso é normal uma vez que todos somos humanos e falhos.
É preciso se convencer de que a supervalorização da imagem e da aparência que vige hoje no mundo é sem sentido e não traz a felicidade porque é baseada no preconceito que é o grande mal da sociedade.
É preciso se convencer de que o que traz a felicidade é a igualdade e não a superioridade, entendendo que desejar ser superior não traz paz e alegria para ninguém.
Há que se convencer de que o importante na vida não é ser capaz de produzir e vencer tudo sozinho com seu próprio esforço, mas sim aprender que a união e compartilhamento é que traz alegria, paz e segurança, pois todos precisamos uns dos outros.
A sociedade atual "exige", por exemplo, que a pessoas bonitas e bem sucedidas, mas é melhor pensar que o sucesso está em ter liberdade de ser quem é, de fazer o que gosta, estar com quem tem afinidades e compartilhar das coisas boas da vida com essas pessoas.
É preciso entender definitivamente que os relacionamentos envolvem sensibilidade, risco e diferenças que nos fazem crescer e amadurecer.
Esses slogans da sociedade:
"faça você mesmo"; "olho no concorrente", "olho por olho, dente por dente"; "toma lá, dá cá"; "bateu, levou", são sintomas e resultado de desajuste social, materialismo e violência.
Quando a existência é tomada por essa anestesia ela se torna vazia, sem sensibilidade e daí advém disto toda espécie de patologias sociais como o isolamento e a violência, e as pessoas vão seguindo cada vez menos SOLIDÁRIAS e cada vez mais SOLITÁRIAS.
As redes sociais, salvo a utilidade e necessidade indiscutíveis, convidam para uma vivência fundada na evitação da convivência real e na ilusão da convivência irreal.
Isso tudo torna as pessoas atormentadas e hipnotizadas.
Todo ser humano precisa ser olhado e acolhido, evento raro na sociedade atual.
Esse olhar e acolhimento salva vidas, e é capaz de diminuir a sensação de inadequação e solidão.
Então, muitas vezes, isso deve ser feito nos consultórios dos psicoterapeutas e psicanalistas, para possibilitar que mais tarde, a pessoa o consiga fazer no mundo, permitindo-se iniciar a expressão de sua forma particular de ser perante os outros.
É preciso que todos aceitemos a nossa totalidade, nossa real natureza humana, nossa condição de seres interdependentes, incluindo força e fragilidade, nossa criatividade e diferenças.
Isso são importantes passos na mudança do Ter para o Ser, da retroflexão para o contato legítimo com as pessoas e com o mundo, porque necessitamos deste contato para obtermos a energia necessária à vida, necessitamos para nos burilarmos.
Já diz o ditado que ninguém pode ser feliz sozinho, mesmo.
Então podemos sim nos auto-amar mesmo sendo INTERDEPENDENTES, porque o auto-amor significa auto cuidado, significa não se abandonar, buscar as melhores decisões e opções de vida, buscar investir na própria cultura e aprendizados diversos, cuidar da saúde física, emocional e psicológica, isso é o auto-cuidado, que nao prejudica as relações e nem coloca a pessoa em situação vulnerável frente aos demais.
Por outro lado, podemos ter independência emocional sem sermos solitários.
Porque correto e saudável é trabalhar pelo combate da carência afetiva à fim de não colocar a vida e às emoção nas mãos de outros, mas fazer isso sem perder a humanidade, consciente de que somos todos interdependentes, com fraquezas também e necessitando interagir e conviver, percebem a diferença aqui também?
Não é saudável querer suprimir da própria vida os relacionamentos para de uma forma doentia, querer dar a si mesmo àquilo que só através do relacionamento se pode alcançar.
Todos necessitam de ter amigos, pertencer a um grupo, se sentir buscado, considerado e amado, quem foge disto está em desarmonia psíquica e espiritual.
Ai muitos podem pensar: Mas como fazer isso, ser interdependente sem colocar as emoções nas mãos dos outros?
Nem é bom fazer Retroflexão e e nem ter falta de auto-amor, porque o primeiro trata-se de uma neurose e o segundo de um conflito introjetato, e ambos necessitam de tratamento.
Mas podemos e devemos tomar atitudes de tentativa de libertação deste conflito:
1-Busque saber selecionar as pessoas com as quais possua afinidades e que possa confiar. Busque conviver com pessoas com o coração bom e fraterno, pessoas estáveis e verdadeiras. E busque antes de tudo ser assim também, claro.
2-Aprenda a compreender as limitações alheias e sabendo lidar com elas, com frustrações. Entender que cada qual está em seu momento evolutivo e dá apenas daquilo que tem. Todas as pessoas erram, mas isso não significa que todas sejam más e que não possamos confiar e contar com elas. Aprenda a distinguir as situações.
3- Como já falamos, buscar trabalhar pelo desenvolvimento do auto-amor para quando todos faltarem, se por ventura tiver que passar por momentos mais difíceis, ter a si mesmo, ser uma pessoa forte. Desenvolver o auto-amor não tem nada a ver com egoísmo. Tem a ver com o auto-respeito, com se auto-abraçar, auto-acolher, não se abandonar nunca.